novembro 02, 2009

O sindicalismo na Justiça (?)

Foi com grande surpresa que li o editorial desta semana do jornal "Expresso", que pode ser lido aqui, na parte em que se refere negativamente ao sindicalismo na Justiça.

Desconheço o que terá motivado a reflexão do "Expresso". No entanto, e embora não pertença ao meio jurídico – ainda que tenha familiares no mesmo - desconheço as novidades de actuação dos sindicatos das magistraturas a que o mesmo autor se refere.

Reconheço porém, que essa actuação possa não ser perfeita, e que peque demasiadas vezes por um corporativismo exagerado. No entanto, não me parece que o corporativismo das magistraturas seja maior - antes pelo contrário - do que o corporativismo patente noutras classes, nomeadamente na dos Advogados, ou na dos Médicos.

Portanto, parece-me inusitado o artigo.

Não obstante, a oportunidade da discussão não invalida a justeza dos argumentos, e, nesse plano, já que o "Expresso" abre o debate, deixarei aqui o meu modesto contributo.

A Justiça deve ter um lugar central numa sociedade digna e dita civilizada. Não sei é se a Justiça é "um dos maiores falhanços das 3 décadas e meia de Democracia", mas concordo que não vai bem.

Mas, serão mesmo os sindicados os principais culpados do descalabro?

Na realidade, não me lembro da última actividade dos sindicatos que tenha posto em causa o funcionamento da Justiça. Pode ser defeito de juventude (que já não é assim tanta quanto isso, infelizmente), mas não me recordo da ultima greve da magistratura. Deve ser das poucas classes do sector público que não fizeram greve nos últimos tempos.

Claro que se pode considerar que a culpa dos sindicatos na degradação da qualidade da Justiça decorre precisamente da inacção. E, nesse aspecto, há muito por onde apontar.

Refere o "Expresso" que a Justiça é "um dos maiores falhanços em três décadas e meia de democracia em Portugal". Mas será que poderia ser de forma diferente?

Dou alguns exemplos, que me parecem que merecem reflexão.

Antigamente, os tribunais eram lugares de imponência arquitectónica. Hoje em dia, o Estado vende-os, para criar as chamadas "cidades judiciárias", que mais não são que escritórios arrendados pelo Estado a particulares em zonas decrépitas e/ou falhadas das grandes metrópoles, e que constituem umas das mais espectaculares manobras especulativas dos últimos tempos. Os poucos "Palácios de Justiça", como eram chamados, que ainda subsistem, caem em ruínas, tal é o desinvestimento.

Por outro lado, a criação dos denominados "mapas judiciários" - que são contestados quase unanimemente por todos os actores do sistema de justiça, ao que julgo saber - parece completamente desfasada das realidades do terreno.

O estabelecimento de "tribunais especializados" em determinada matéria colocados apenas em determinadas zonas do território nacional, contribui largamente para o afastamento das populações da Justiça, ao implicar custos maiores para intervenientes e testemunhas, que se têm de deslocar por vezes dezenas de quilómetros para comparecer às audiências - ao invés de, como antigamente, se deslocar o tribunal às pequenas localidades.

A produção legislativa - como foi denunciado pelos media - nunca foi tão prolífica, mas também de tão baixa qualidade. A quantidade de leis que são aprovadas pelo poder legislativo, emendadas antes de entrarem em vigor, e remendadas ao longo dos anos, é pura e simplesmente inaceitável. A isto, acresce o fenómeno relativamente recente das leis feitas à medida.

Quem desconhece a denominação do "Código Casa Pia", relativamente às alterações todas que fizeram ao Código Processo Penal? Será que alguém considera a norma que determina que "a prática continuada de um mesmo crime sobre uma mesma vítima ao longo do tempo constitui apenas um crime", uma medida justa, e completamente desprovida de interesse em um ou outro processo mais mediático?

Terão sido alguns diplomas-chave do nosso ordenamento jurídico feitos, no superior interesse do povo Português?

Permitam-me discordar, e relembrar os casos também da Lei das Armas, do Estatuto dos Açores, da Lei de Segurança Interna, Lei de Organização da Investigação Criminal, e da Lei-Quadro de Política Criminal, e do já referido Código do Processo Penal.

No meio do “pântano legislativo” em que o País se encontra, como será possível prestigiar o que quer que seja?

Refere também o semanário que os magistrados (juizes e, mutatis mutandis, magistrados do MP) "são hoje em dia um dos grupos socioprofissionais mais privilegiados na sociedade portuguesa".

Pode até ser verdade.

No entanto, parece-me que, com fundamento de melhorar o funcionamento do Estado, poucos terão sido os grupos socioprofissionais tão sacrificados. Dos privilégios que se apontavam, pouco resta.

O período de férias, que de semelhante ao do calendário escolar passou a ser igual ao do resto dos trabalhadores, e mais, com a imposição extra de as férias serem gozadas no período de "férias judiciais", mesmo que tal não seja do interesse do magistrado.

O subsistema de saúde, ao que parece um dos poucos que era sustentável (e sustentado pela classe), foi encerrado, e substituído pela muito menos vantajosa ADSE. Os únicos beneficiários do antigo subsistema do Ministério da Justiça, ao que parece, são os Senhores Deputados da Assembleia da República.

Quanto aos restantes privilégios... Serão assim tão escandalosos, que mereçam reprovação nos termos que o Editorial usa?

Sem uma concretização, torna-se difícil saber do que fala exactamente...

Neste panorama, concluo que os sindicatos têm tido um papel bastante didáctico perante a opinião pública, e não têm constituído um bloqueio ao normal funcionamento da Justiça. Aliás têm, inclusivamente, concretizado concessões difíceis de conciliar com a dos interesses dos seus associados. Não sendo eu um sindicalista, acho que a chamada de atenção para os sindicatos nestas premissas, mais não é que arranjar bodes expiatórios para os problemas, ao invés de os resolver.

Texto actualizado a 3 Novembro: Retiradas referências a Henrique Monteiro, director do "Expresso", pois o Editorial referido não vem assinado. Ao visado, as minhas desculpas.