agosto 17, 2009

Meia noite e meia na estação de comboios da Campanhã.

Por entre as sombras da noite, pode-se observar a subtil dança protagonizada pelo pobre indigente que procura um recanto abrigado para pernoitar e os seguranças que - fechando os olhos à injusta situação - não podem no entanto deixar de acompanhar o senhor e certificar-se que a liteira do desgraçado não incomoda os demais utentes daquele espaço.

Esses, por outro lado, aguardam, aparentemente imunes à injustiça social e humana que é a de, numa sociedade de luxo e desperdício, a de não haver quem tenha sítio para dormir. São, tão só e apenas, sombras refasteladas na penumbra da noite húmida e fria portuense, atenuada pelos frouxos candeeiros da estação, e uma ou outra ocasional cintilante ponta incandescente de cigarro.

Os serviços básicos da estação, estão há muito fechados. O bar, a papelaria, a bilheteira... O WC, esse ainda está disponível - em troca de 0.50€, se a vontade for maior que o básico refresco das têmporas ou usufruto do urinol -, mas por pouco tempo. Já o faxineiro, um senhor com aparência de muitos anos de casa, passa o esfregão pelo chão, impaciente para ir para casa para o merecido descanso... Ou, passará talvez, ainda, por uma qualquer tasca ainda aberta para cumprimentar os comensais de tantas noites de volta do bagaço?

Em volta da lúgubre cena cai o silêncio pesado da noite, imposto pela lei inexorável da periferia abandonada a vidas marginais e marginalizadas de pobreza, prostituição e droga, encapotadas em prédios e armazéns cinzentos de velho ou em ruínas - ilhas separadas por auto-estradas e viadutos que estão longe do olhar e ninguém quer verdadeiramente visitar.

Há um claro desconforto nos olhares dos utentes que esperam à meia noite na estação de comboios da Campanhã. E esse desconforto, não pode ser explicado pela noite de Verão que se revela fresca e húmida (como é aliás de boa tradição naquelas terras), nem tampouco com facto de à noite todos os gatos serem pardos, e a nossa confiança no cidadão sentado ao lado no banco diminuir instintivamente.

A explicação para o desconforto pode ser encontrada fácilmente, atentando um pouco no placard electrónico de informação. O Intercidades ainda não chegou.

As pessoas, essas, esperam.

O silêncio espesso da noite, é quebrado pela voz aveludada-estridente feminina do altifalante. "Senhores passageiros: Lamentamos informar que o comboio Intercidades procedente de Lisboa Santa Apolónia circula com doze minutos de atraso, prevendo-se a sua chegada à gare às zero horas e quarenta e cinco minutos minutos. Pedimos a sua compreensão pelos incómodos causados."

Aos utentes, resta esperar. Esperar, e compreender bem demais os "incómodos causados" pelos sistemáticos atrasos.

Passados vinte minutos do anúncio, uma moça nos seus vinte anos pega no telemóvel: "Amor, onde estás? Se o combóio não chegar já, tenho que ir, senão não apanho o último autocarro, e de taxi fica demasiado caro... (...) Pois, tá bem, mas como é que fazemos? (...)" Dá duas voltas ao banco, e volta a sentar-se. Vai esperar, tal como todos os outros utentes. O problema do autocarro há-de se resolver.

A mensagem, essa, repete-se periodicamente. Promete sempre o famigerado comboio para daqui a 5 minutos. Para daqui a 2 minutos. O comboio, esse, não chega.

"Compreensão pelos incómodos causados." Bem melhor seria que pedissem compreensão pela ausência de melhoramentos no serviço desde há anos, motivados pela espera incessante de um TGV que venha resolver todos os males - ou, pelo menos atirá-los para debaixo do tapete. Em alternativa, que tal começarem a pedir desculpa pelo péssimo serviço prestado, em vez de "Compreensão pelos incómodos causados"?

O comboio, esse, lá chegou, e as multidões, residentes e recém chegadas, unidas numa só mole humana, dispersaram rapidamente no meio da noite, deixando os sem abrigo e guardas nocturnos mais descansados na sua dança diária, numa estação de comboios vazia.

40 minutos depois.

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