junho 13, 2009

3º Calhau a Contar do Sol

Aqui há uns tempos, passava na televisão uma comédia chamada "3º Calhau a Contar do Sol". Nela, um comando de espiões extra-terrestres infiltrava-se no planeta Terra e tentava obter informações acerca dos primitivos humanos.

Era uma série em que, ao bom estilo de Gil Vicente se fazia uma crítica (por vezes mordaz) da forma como somos, como funcionamos, como nos relacionamos, nas nossas ambições, nos nossos sentimentos, nas nossas contradições.

Tudo o que se passava nessa hora, tirando a hipérbole necessária à própria comédia, era profundamente realista e humano.

O que faz a técnica da série funcionar, é algo muito semelhante aos artifícios de retórica que Umberto Eco mencionou magistralmente na sua participação no ciclo "Sob o Signo da Palavra", organizado pelo Centro de Estudos "A Permanência do Clássico", em 20 de Maio de 2004, na Universidade de Bolonha. ("A passo de Caranguejo", 6a ed., Difel, pp. 47 e seguintes)

A intervenção do grande pensador italiano começa com algo do género: "Não sei se o que vou dizer adianta alguma coisa, porque vocês não têm capacidade para o compreender", para explicar como tal forma de argumentação é obviamente contraproducente para convencer a audiência da justeza das nossas afirmações subsequentes.

E, na sua forma didáctica de expôr as questões, continua dizendo algo como isto: o problema surge, no entanto, quando nos afirmam algo subtilmente diferente: "Não sei se o que vou dizer adianta alguma coisa, mas irei dizê-lo na mesma em respeito aos 2 ou 3 que têm capacidade intelectual para perceber o que digo". Neste caso, cada pessoa se sentirá uma das "2 ou 3 iluminadas", e, olhando com desdém para quem os rodeia, fará o seu melhor para aceitar a teoria que lhe é proposta - afinal, prova inequívoca da sua superioridade! - mesmo que seja contra os seus próprios valores e ideais.

É uma rasteira subtil, mas eficiente. Como se costuma dizer, nos pormenores é que se esconde o diabo!

Dizia eu, a comédia na série televisiva, encontra-se num artifício muito semelhante: o tele-espectador, ciente da sua superioridade perante os eventos que lhe são mostrados, permite-se achar graça aos mesmos. O engano está na própria superioridade do espectador, que é completamente ilusória. Ridendo Castigat Mores. A rir castigas os teus costumes.

Não pretendo advogar para mim nem superioridade, nem convencer o prezado e indulgente leitor da justeza (ou não!) das minhas observações. Mas, na minha mentalidade (leiga, e certamente ignorante dos grandes desígnios), tenho hoje, em grande medida, a ideia de estarmos a viver dentro de um gigantesco e super elaborado episódio do "3º Calhau a Contar do Sol".

Senão vejamos.

A ideia geral alinha-se para uma imagem da sociedade em que os (poucos) ricos (poderosos banqueiros, empresários, políticos) se organizam para controlar (explorar, subjugar) os (muitos) pobres, com o intuito de aumentar a sua esfera de poder e/ou a sua riqueza.

Com essa ideia em mente, organizam-se teorias de organização da sociedade, genericamente denominadas de "direita" ou de "esquerda", que advogam uma maior ou menor regulação/intervenção da sociedade sobre o indivíduo - principalmente, sobre os ricos ou especialmente poderosos.

A "direita", genericamente, defende as liberdades individuais, e uma auto-regulação do indivíduo, enquanto a "esquerda" defende a supervisão da sociedade (estatal) sobre os indivíduos.

Assim, a "direita" é normalmente associada aos estratos da sociedade dominantes, enquanto a "esquerda" se identifica logicamente mais com o proletariado, e as classes trabalhadoras.

A ironia - não por acaso elemento muito associado à comédia, e especialmente utilizado nas peças de Gil Vicente e na sitcom americana - surge em períodos de crise como o que atravessamos actualmente, em que os ricos e poderosos (a "direita") vem pedir apoios estatais para os (seus) negócios privados em colapso, enquanto o povo (a "esquerda") se manifesta ruidosamente contra os mesmos.

Por certo não ignorará a esquerda a razão dos que, à direita, dizem que se as empresas falirem, os trabalhadores irão para o desemprego, e o povo passará fome.

Na mesma medida, não ignora a direita, que o excesso de liberdades - que advogam - torna a sociedade instável, e que a participação/supervisão do estado sobre as actividades privadas é necessária, potenciadora de estabilidade, e geradora de períodos mais alargados de prosperidade social e económica - mesmo que possa limitar (e limite de facto) em determinados períodos a dimensão dessa mesma prosperidade.

Mas, é claro que ninguém quer perder a face, mesmo que, de ambos os lados da barricada ideológica, o gato se esconda com o rabo de fora.

(A juntar à fina ironia deste episódio, nas últimas europeias os povos deram uma vitória inequívoca à escala europeia dos partidos de direita sobre os da esquerda. Mas não pretendo teorizar sobre este assunto...)

O caso BPP é sintomático do que acabo de dizer. No auge da crise financeira, o então presidente da instituição veio pedir apoio estatal para a salvar da falência. O governo - de esquerda, e apesar da oposição ruidosa de toda a oposição ainda mais à esquerda - prontamente se disponibilizou a ajudar, intervencionando e congelando as contas dos depositantes do banco.

Pode-se dizer, que o governo teve uma atitude coerente com os seus ideais. A oposição à esquerda, por outro lado, não poderia ter uma reacção mais à direita, pois a ausência de intervenção significaria a falência da instituição, e ruína para trabalhadores e clientes.

Esta semana, no rescaldo de uma potente derrota eleitoral, o mesmo governo de esquerda - pressionado sem dúvida pela necessidade de alinhar rapidamente a sua acção com a dos partidos ideológicamente mais semelhantes - veio ceder ao protesto das oposições ditas de esquerda, e dar o dito por não dito, isto é, deixando cair o banco.

Parece-me muito justa a observação de Paulo Ferreira, na edição do Público de hoje: "se a decisão do Governo de deixar o BPP entregue às leis do mercado está correcta, então ela chegou atrasada sete meses; mas se considerarmos que ela chegou no tempo certo, então ela está errada." Afinal, o raciocínio que está perante as tomadas de decisão neste caso, não se percebe.

Aliás, percebe-se, e bem, é o jogo da sobrevivência política!

O problema, é que estas acções ziguezagueantes dizem muito acerca da natureza humana, e dão razão aos cépticos que criticam o discurso bem intencionado de António Barreto, que nas recentes comemorações do dia de Portugal dizia que o exemplo fazia mais pelo progresso e bem estar da comunidade que discursos bonitos e bem elaborados.



Em Itália, Berlusconi soma e segue, apesar das suas extravagâncias com raparigas de tenra idade nos seus palácios e sabe-se lá onde mais, e acção legislativa feita à medida, e atropelos aos direitos humanos, e alegadas ligações às mafias, e..., e... E... Não me encontro suficientemente habilitado para arriscar a explicação do fenómeno. (Penso no entanto que as consequências da manutenção daquele senhor no cargo serão graves e duráveis, e que a falta do povo italiano em reconhecer isso mesmo deve ser motivo de preocupação e reflexão profunda.)

Escrevamos sem rodeios: O senhor é motivo de chacota por toda a Europa. Mas, será assim tão diferente em nossa casa? Como no "3º Calhau a Contar do Sol", tirando a espectacularidade e a extravagância das acções, o que é que separa o senhor Berlusconi do senhor Sócrates, do senhor Jardim, do senhor Presidente da Câmara, do Patrão, do empregado, do vizinho... de nós próprios? Será assim tanto?

Em Inglaterra, o governo teve uma pesada derrota eleitoral, diz-se, devido a um escândalo de uso de dinheiros públicos para financiar despesas privadas dos deputados. A verdade, parece, é que todos o faziam, e que a grande fatia do bolo até terá sido gasta pelos deputados do principal partido da oposição (que, por acaso, até terá ganho as eleições).

Mais uma vez, assim tão diferente de nós próprios?

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