junho 17, 2007

Recorte de Imprensa

Do Jornal de Noticias de hoje, pode-se ler esta cronica que, pessoalmente, achei fabulosa (por razoes que ja perceberao). Nao posso deixar de partilhar:

O viajante solitário





Fernando Marques , Jornalista

Um jovem viajante solitário traz da sua primeira viagem apenas uma história. Por exemplo, se vai à Alemanha importar salsichas, relata as suas aventuras nas fábricas de enchidos os sabores, os tamanhos, a tecnologia, o controlo de qualidade. E é recebido pelos amigos e pela família como um herói de lendas e narrativas. Um miúdo a começar a vida chega às fábricas alemãs, põe-se a provar salsichas com mostarda e depois encomenda a gosto. É obra. E os amigos: que sorte teres ido à Alemanha. E a namorada: que sorte teres comido tantas salsichas alemãs com mostarda. E os pais: que sorte teres feito um negócio de salsichas aos vinte anos, filho.

Mas, após a primeira viagem, a segunda viagem é ainda a história de debicar e comprar salsichas. E as seguintes idem ibidem. O jovem viajante chega com a mesma história para toda a gente e já ninguém se interessa. Só a família então, compraste muitas salsichinhas, filhinho? É por esta altura que começa a inquietar-se a alma do jovem viajante solitário. À sexta ou sétima viagem, põe uns pormenores de outra história na história de sempre. Conta rápido à família e à namorada o enfado do avião, do hotel e das fábricas de salsichas e reserva para os amigos umas meias frases misteriosas, umas meias palavras a sugerir uma história dentro da história que eles já não querem ouvir.

Não tarda, volta com três histórias completas uma para os pais, que ainda lhe ouvem a história do costume, uma brejeirinha para os amigos (as alemãs, ai Jesus, o que elas são capazes de fazer por um viajante do sul...), outra para a namorada (que é a história para os pais apimentada com uns detalhes inofensivos da história para os amigos). Neste estádio, o jovem viajante solitário está a um pequeno passo de se tornar um genuíno viajante solitário. Compreende que, para poder continuar a recitar a sua história, precisa de alguém que saiba ouvi-lo com paciência e resignação. Alguém que o espere no fim das viagens e seja o alvo das suas setas, o saco do seu vómito, o arquivo da sua solidão.

E é assim que ele regressa à história única e imutável de ir à Alemanha importar salsichas, porque um viajante solitário casado conta à sua mulher a estabilidade de um enredo sempre, sempre igual. Um dia, perdidos os amigos noutras gestas, perdidos os pais no mistério da morte, perdidos os filhos na vida deles, perdida talvez a mulher num labirinto de aviões, hotéis, fábricas e salsichas com mostarda, o viajante solitário há-de ver-se na contingência de contar a sua história a si mesmo. Então, com sorte, acordará.
in Jornal de Noticias

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